O masculino, o feminino e as relações afetivas
Culpamos a cultura por sustentar e estimular uma dinâmica patriarcal ao longo dos tempos, enraizando um modelo social onde a obediência e o sacrifício da mulher se submetem à uma autoridade furtiva do homem, tornando-o, desde épocas muito remotas, o senhor absoluto nas dinâmicas públicas e familiares, especialmente nas tarefas e responsabilidades vinculadas aos valores de força, defesa, trabalho e sustento financeiro.
Tal condição, aparentemente imposta pela cultura, vem sendo atualizada em tempos modernos num sentido de equilíbrio de papéis e funções, mas ainda se tem muito a equalizar para que o ser humano viva sua inteireza onde as polaridades são consideradas, tanto externamente como internamente.
Percebemos que o homem, desde muito tempo se mantém numa confusão com aquilo que é socialmente determinado e com aquilo que é de sua própria natureza, sua totalidade, sofrendo silenciosamente os encargos de um padrão a ser cumprido, carregando apenas parte de sua estrutura psíquica, isto é, somente com aquilo que lhe foi introjetado em seu papel como homem e exclusivamente com os traços de uma masculinidade, muitas vezes, distorcidas e não integradas com seu próprio feminino. Afinal, homens e mulheres são portadores de ambas consciências: do masculino e do feminino.
Mas a cultura patriarcal rígida, desde sempre, colocou o homem numa posição da qual ele deveria honrar e desempenhar seu papel com bastante rigor e sem fraquejo, despertando, assim, um medo avassalador de não se estar à altura das expectativas deste lugar. Tal medo, embora existente, jamais foi aceito e integrado pelo próprio homem, pela exigência da unilateralidade racional e rústica, como medida de masculinidade.
E qualquer vacilo, sentimentalismo ou fragilidade era, para o homem, concepções muito mais desastrosas do que sua própria aniquilação, por produzir impactos intoleráveis em seu psiquismo, não condizentes a sua personificação de força e resolutividade. Isto é, o homem sentia mais medo do fracasso e do sofrimento do que a sua própria morte.
A vida do homem sempre foi governada pelo medo e, um dos seus maiores temores fora (e ainda é) o poder do feminino em sua organização psíquica. Uma energia existente mas, desconhecida, escondida, que está lá, adormecida, dissociada, pela imposição social que retira o homem do contato com o seu próprio feminino interno e que, soterrado, terá exclusivamente a opção de ser encontrado por meio das projeções em seus relacionamentos.
Mas vamos começar do começo…
Tudo se inicia na experiência com a mãe pessoal e o anseio pelo carinho, ligação e proteção. A mãe encarna os mais importantes símbolos e desígnios, como a grande protetora, provedora e mediadora do mundo suscetível da criança com a realidade externa.
Antes de emergir e despertar no mundo exterior, a criança compartilha, no útero materno, a bioquímica, a rede neurológica e o sangue de sua mãe, vibrando em consonância com a própria vida dela, incluindo seus humores. Isto quer dizer que, a mulher, seu corpo e seu psiquismo são, de saída, os primeiros aspectos encontrados, por meninos e meninas, numa experiência essencialmente estabelecida com o feminino.
É um lugar cuja dependência é absoluta dos cuidados do ambiente, isto é, da maternagem. Se tais cuidados forem suficientemente bons, a criança estará mais integrada e estruturada para a vida compartilhada e, com isso, haverá sempre um anseio de aproximação por tudo aquilo que este momento representou, desde a experiência da solidão essencial no útero materno. Mas, poderá também, ser um lugar de distanciamento, pelos traumas concebidos nas frequentes negligências ou intrusões.
Portanto, essa influência do feminino é o primeiro e mais importante fluxo de informações que homens e mulheres recebem a respeito de si mesmos e da vida. É onde tudo começa e onde se organiza a personalidade.
Mas, vejamos: começaremos a falar de um menino cuja experiência tenha sido suficientemente boa com sua mãe e, portanto, uma relação positiva tenha se estabelecido com este lugar, criando um anseio por aproximação. No modelo organizado rigidamente patriarcal, que perdurou por muitos anos e ainda se mantém, o menino irá, compulsoriamente, ser retirado do mundo feminino para exercer os padrões patriarcais exigidos socialmente, cujo masculino se apresenta de maneira distorcida e enrijecida. Neste caso, não haverá a inclusão, a soma do modelo masculino aos elementos e aspectos do feminino já vivenciados em sua organização psíquica. Será uma sobreposição com a ruptura e anulação do mundo feminino, por ser considerado incompatível com o homem que está crescendo e assumindo seu papel. Esse distanciamento fará com que o menino se utilize de mecanismos para se adaptar a uma realidade não própria, mas instituída socialmente.
No caso das meninas, a manutenção do feminino será o modelo a ser seguido, porém o masculino poderá assentar em seu psiquismo como um acréscimo de suas experiências, sem muitas considerações impeditivas. Infelizmente, para o menino, o feminino não será um lugar a ser mantido, pois as qualidades inerentes que representam o profundo, o mundo interno, o sentimental, não são consideradas aceitáveis para o homem-macho. Isto nos leva a entender que o homem não vive sua polaridade masculina-feminina, mas se organiza para a vivência da unilateralidade tóxica pelas exigências externas. Mas o equilíbrio da organização psíquica está exatamente nas polaridades e,toda unilateralidade rígida, produzirá sintomas emocionais e físicos para o indivíduo.
Considerando esta ruptura que surge em determinado momento da vida, vamos agora analisar a qualidade da relação com o feminino e suas consequências nos relacionamentos afetivos.
Quando essa experiência inicial satisfaz as necessidades psíquicas e orgânicas, o menino representará o feminino como acolhedor e se sentirá pertencente à vida, amado e protegido. Mas quando a experiência primordial do feminino é condicional ou dolorosa, a ferida será sentida no corpo e na alma, criando resistência e rejeição, distanciando, assim, o menino do feminino.
A imagem do feminino estará sempre carregada de sentimentos associados às vivências pessoais com a própria mãe ou substituta, portanto está passível ao desenvolvimento de uma relação satisfatória, dependência ou repulsão. Nas polaridades dependência ou repulsão teremos sempre consequências devastadoras relacionadas às expectativas versus realidade e poder.
Experiências que criaram dependência são aquelas em que a mãe frequente e exageradamente se manteve à disposição para satisfazer e servir as necessidades e vontades do seu filho, sem irromper por qualquer limite. Logicamente que estamos falando de estágios mais adiantados onde o filho poderia e deveria ser desiludido nas suas solicitações exageradas. Mas, aqui houve uma necessidade desta mãe em se manter identificada com este filho para além do que seria viável. Essa mãe não conseguiu estabelecer limites e este filho irá desenvolver expectativas grandes demais e dimensões irreais, que serão projetadas nos relacionamentos afetivos, transformando as parceiras ou parceiros em mães, e assim, exigindo das suas mulheres ou parceiros a total disponibilidade para a sua atenção e aceitação.
Tal cenário desperta no homem o sentimento de frustração, pois ele jamais será atendido da forma imperiosa, como um dia fora acolhido pela sua própria mãe. Isto é, sua mulher ou parceiro, sob nenhuma circunstância, poderão ser tão solícitos quanto à imagem desta mãe impregnada no seu inconsciente, portanto, aquela que fora uma “benção” se torna também uma maldição. Nos relacionamentos afetivos, carregados de imagens projetivas desta mãe grandiosa, a opressão será a condutora para o controle de alguém que lhe possa atender todas as suas necessidades regredidas.
Esta maldição pode ter um pano de fundo ligado à necessidade desta mãe ter vivido, por meio de seu filho, aquilo que não pôde ou não conseguiu viver em sua própria vida e relacionamentos. Frustrada, investe sua energia psíquica no domínio de seu filho para a construção de uma “autoridade”, inflando-o com o poder que fora sonegado em sua própria personalidade, por sua insegurança e competência duvidosa. Ele servirá para atender aquilo que ela não conseguiu realizar em sua vida ou em seu relacionamento.
Às vezes, a imaturidade emocional da mãe e sua própria dependência, inconscientemente, promove ao filho capacidades que o levam ao sucesso, nas dimensões do trabalho e produtividade, mas em prejuízo do sentido pessoal que ele vê nas coisas que está fazendo, por ter sido, muitas vezes, contaminado pelos desejos de sua própria mãe.
Por outro lado, podemos ter também um homem que vivenciou no seu relacionamento primordial, experiências bastante dolorosas e profundas, produzindo traumas e feridas emocionais que se mantêm abertas, e com isso, contribuirão para uma perspectiva negativa do elemento feminino, como algo que poderá, potencialmente, trazer e relembrar a dor vivida.
Se, por um lado, temos uma mãe demasiadamente protetora e grandiosa que infla a expectativa do menino, temos neste segundo caso, uma negação deste feminino, por se tratar, de um princípio que pode ferir e machucar, como um dia já o fez. Nos dois casos, o feminino está dissociado e distorcido, gerando desconfiança neste homem.
Este poder psíquico no homem acarreta o medo oculto de um feminino que é, ao mesmo tempo, sedutor e devorador; um feminino obscuro, não entendido e não conhecido no mundo masculino. O medo traz a opressão, a necessidade de poder e de controle para moldar uma mãe-mulher que o homem não teve e quer ter, ou uma mulher-mãe que ele já teve, mas que, inconscientemente, não quer mais tê-la, com medo da dependência. O homem oprime aquilo que ele teme, isto é, o medo é o responsável pela opressão.
Pode ainda, este homem, tornar-se tão mais dependente de sua mulher, entregando-se por completo e, assim, anulando suas próprias necessidades, a fim de satisfazer todas as suas exigências e vontades, para que ela preencha o espaço das suas feridas abertas e, portanto, encerre sua dor, que representa, para ele, fraquejo e suscetibilidade. Ou, na introjeção desta “mãe positiva”, espera o homem que, com sua total entrega e submissão, sua mulher ou parceiro sejam o feminino conhecido de outrora.
A figura paterna teria um papel importante para transpor o complexo materno ao mundo masculino, mas este pai é tão carente do enraizamento dos elementos organizadores masculino-feminino quanto seu filho, pois aprenderam, como todos os homens, aquilo que representa o machismo e o fascínio pelo poder.
Ser homem é ter acesso ao seu feminino, ao seu mundo interno, estar conectado às suas emoções, ideias, humores e dores. Conversar, dialogar e negociar com seus sentimentos para expressar sua totalidade, a fim de tirar a máscara do papel unilateral do poder, que corrompe, estimula o medo e segrega, tornando-o grande competidor, desconfiado do mundo que o cerca, incluindo seus pares.
Somente o contato e a elaboração do próprio feminino permitirá ao homem o encontro com sua totalidade e com as partes mais profundas de sua natureza psicológica, permitindo à adaptação com seu próprio mundo profundo e interno e com o mundo externo, retirando, assim, a projeção da sombra do feminino em seus relacionamentos afetivos.